quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Herança de Família

Herança de família


Conheci Maria quando ela era moleca. Eu estava passeando com Zeus, meu cachorro, quando a vi saindo de sua casa correndo apavorada. Ela trazia um olhar triste, com lágrimas percorrendo seu rosto, e uma boneca de pano em seus braços como se fosse sua única companheira em momentos como aquele. No momento em que a vi naquele estado, meu coração e todos os meus sentimentos se ligaram àquela pessoa. Eu não sabia o que falar ou o que fazer.
Zeus corria em volta da gente, parecendo nos unir... Parecia um elo que ligava, ao mesmo tempo, nossos olhos e nossos sentimentos. O que eu sentia não era exatamente pena. Talvez compaixão por todo aquele sofrimento que brotava de seus olhos através de lágrimas pesadas e frias, traduzindo o que ela, provavelmente, havia passado por tanto tempo.
Naquele momento, ele era muito mais do que um cão. Parecia entender aquilo que nós não entendíamos. Nos apoiava, sem querer nada em troca.
Os pais dela eram sempre muito ríspidos, e com isso “Mariinha” não era feliz. Éramos confidentes um do outro. Certa vez ela me contou algo que me fez jurar pela vida do Zeus para guardar segredo. Com os olhos franzidos e aguados “Mariinha” disse que toda noite, quando o pai dela chegava do trabalho, espancava a mãe. Eu não sabia o que dizer naquele momento e a minha reação foi abraçá-la. Eu alguns anos mais velho e ela uma menina botão, que ainda não tinha virado flor. Mas quando o sol despertava as coisas voltavam ao “normal”, apenas os sinais violeta no corpo da mãe dela.
Mas de todos os episódios que soube, o mais macabro, cuja mente se esforça para esquecer, foi no dia em que “Mariinha” durante a madrugada levantou para ir ao banheiro. Ela viu seu pai colocando um líquido estranho no colchão da sua mãe, e quando ela custou a imaginar o que poderia estar acontecendo, tudo virou cinza. A casa humilde feita de tábua virou uma fogueira viva. Depois desse fato Maria da Penha se mudou para a casa da tia. Ficou então a mercê do tempo. Eu, seu fiel escudeiro e companheiro, ajudava ela a liberar aquela energia pesada que foi obrigada a presenciar.
O tempo passou e lá estava uma flor, que bela flor! ”Mariinha” se tornara Mariona, linda e encantadora, minha amiga, meu amor. Juntos, descobrimos que na situação da Dona Antonieta, mãe de “Mariinha”, onde sua sentença foi a fogueira. Não era preciso ser bruxa, bastava ser pobre, negra e mulher. Descobrimos também um mundo cheio de alegrias: saíamos, brincávamos... Uma amizade inigualável. Só que ela nunca me amou do jeito que eu queria ser amado. O amor não é óbvio! Talvez o dia mais angustiante da minha juventude, foi no dia em que se casou com Alberto da Silva. Ela estava feliz, e aquilo me consolava.
Foi morar com ele a 582 KM de distancia de mim. Perdemos o contato durante seis anos, foi quando decidi, como um amigo fiel, ir visitá-la. Quando encontrei “Mariinha”, ela estava sentada em uma cadeira de rodas. Não compreendi! Ela me disse que havia ficado paraplégica e eu fiquei curioso para saber os motivos. Foi quando ela me fez jurar pela vida do Zeus, novamente, que iria guardar segredo. Com os olhos franzidos e aguados, ela contou que apanhava do marido todos aqueles seis anos. Disse também que ele tentou assassina-la duas vezes, uma vez com o revólver que a deixou paraplégica, e a segunda por afogamento e eletrocussão. A minha reação foi abraçá-la, ela era apenas uma flor!
Voltei para minha casa inconformado. Eu havia jurado que não ia contar pra ninguém, mas como o amor não é óbvio mesmo, denunciei. Eu amei “Mariinha” a minha vida inteira e estava disposto a esperar o tempo que fosse preciso para que a justiça fosse feita. No dia 7 de agosto de 2006 foi decretada pelo Congresso Nacional a lei de número 11.340, aumentando o rigor das punições de violências contra mulher.
O grande mártir desta história foi o Zeus, que morreu após a quebra de um juramento. Um símbolo de amor, que marcou o inesquecível dia em que Maria da Penha entrou na minha vida. Ela hoje mora comigo, e espero que ela também possa morar nos lares de todas as famílias deste país, e mudar sua história assim como mudou a minha. Mas se você não tem um amigo cachorro como o Zeus, que pelo menos possa ter amor à vida.

Tiago Milward de Aguiar

Um comentário:

Lennon disse...

Dale Vivald ...
Escritot..

hummm..

Parabénssssss